A melatonina, hormônio produzido pela glândula pineal,
situada no centro do cérebro, é conhecida há tempos por seu papel na regulação
do sono. Agora, surgem evidências de que ela também exerce uma ação fundamental
no controle da fome, no acúmulo de gorduras e no consumo de energia. “Na
ausência da melatonina, ratos desenvolveram doenças metabólicas e se tornaram
obesos.
Localização da glândula Pineal |
Já a reposição do hormônio favoreceu a perda de peso”, conta o
fisiologista José Cipolla Neto, da Universidade de São Paulo (USP). Ele coordenou
uma série de experimentos com animais, realizados em parceria com outros
pesquisadores de São Paulo, da França e dos Estados Unidos, que estão
demonstrando como a variação nos níveis de melatonina ao longo do dia afeta a
ingestão e o gasto de energia, o chamado balanço energético do organismo.
Cipolla e seus colegas começaram a identificar a influência desse hormônio
sobre a fome e o acúmulo de energia usando uma estratégia clássica da
fisiologia. Segundo essa estratégia, para se conhecer a função de determinado
componente em um sistema, é preciso eliminá-lo e observar o que acontece.
Por
meio de uma cirurgia, eles extraíram a glândula pineal dos animais, extinguindo
a produção do hormônio, e acompanharam as mudanças que surgiram. Depois, como
se colocassem de volta a peça retirada, reverteram o efeito fazendo a reposição
de melatonina via oral e registrando como era afetado o funcionamento de
diferentes órgãos e tecidos sobre os quais a melatonina atua. Os experimentos
revelaram que o metabolismo energético tem uma organização temporal diária
sincronizada pela melatonina.
À medida que
escurece, a pineal passa a liberar o hormônio até alcançar uma concentração
máxima, inundando o corpo com melatonina. A partir desse pico, que ocorre por
volta do meio da madrugada, a concentração de hormônio diminui e permanece
baixa durante a manhã e a tarde – os níveis são 10 vezes menores do que à
noite. No caso dos seres humanos e de outros mamíferos de atividade diurna, as
concentrações mais baixas coincidem com o período de maior atividade. É durante
o dia que esses animais se alimentam – ou, ao menos, comem em maior quantidade
do que à noite – e estocam mais energia do que gastam.
A energia armazenada
na forma de gordura ou de estoques de açúcares durante o dia garante que o
organismo continue funcionando à noite, em geral o período de descanso, quando
os níveis de melatonina estão altos e o corpo passa horas em jejum. Uma parte
significativa dessa energia é usada pelo tecido
adiposo marrom – esse tipo de gordura gasta energia, enquanto a gordura
branca a armazena – para produzir calor e manter o corpo aquecido num período
em que há pouca contração muscular (outra fonte de calor). O consumo de energia
pela gordura marrom é tão elevado à noite que, no balanço geral, compensa o que
havia sido estocado de dia. Como resultado, o peso praticamente não muda.
“Do ponto de vista evolutivo, essa organização temporal do
metabolismo energético deve ter sido fundamental para a sobrevivência dos
mamíferos”, diz Cipolla, um dos pioneiros no país dos estudos em cronobiologia,
área da ciência que investiga como os fenômenos biológicos variam no tempo.
Produzir reservas energéticas no período de atividade, conta, pode ter
permitido sobreviver em segurança à noite, quando se está em jejum e se dorme,
em geral, em ambiente isolado e menos suscetível à ação de predadores.
Nos testes em laboratório Cipolla observou que, depois de
algum tempo, os ratos que não produziam melatonina apresentaram distúrbios
metabólicos associados ao desenvolvimento da obesidade. Os níveis de açúcar
(glicose) e de gorduras (lipídios) no sangue eram mais elevados do que o
normal, o que favorecia a estocagem de energia na forma de gordura no tecido
adiposo branco e no fígado. Além de ter mais energia disponível para guardar,
os animais também passaram a comer mais e fora de hora, além de gastar menos
energia. Segundo Cipolla, essas mudanças são efeitos diretos da redução da
melatonina, hormônio que, como ele vem demonstrando, auxilia no controle da
fome e estimula o tecido adiposo marrom (concentrado ao redor do pescoço, sob
as clavículas e ao longo da coluna vertebral) a gastar energia.
CRONORRUPTURA
Sem a melatonina, os
animais perdem o padrão de organização rítmica diária do metabolismo. “Ocorre a
chamada cronorruptura”, explica Cipolla. Como consequência, o cérebro deixa de
perceber a saciedade e o apetite aumenta. Assim, come-se mesmo que fora de
hora. Para piorar, o organismo gasta menos energia. Se antes os animais
acumulavam energia quando estavam acordados e a gastavam durante o repouso,
alternando os períodos de estocagem com os de queima de gordura, agora passam a
acumular energia o tempo todo e engordam.
Cipolla notou ainda
que era possível reverter os efeitos da cronorruptura – que também pode ocorrer
pela exposição excessiva à luz (em especial à luz azulada de telas de
computador, tablets, celulares e TVs de LED) e, nos seres humanos, pelo
trabalho no turno da noite – ao dar melatonina via oral para os animais. “Os
roedores que receberam reposição do hormônio perderam peso”, conta o
pesquisador. Aqueles tratados com melatonina logo após a remoção da pineal não
sofreram alterações no metabolismo energético.
A administração do
hormônio também gerou um efeito protetor em roedores idosos e obesos, que produzem
menos melatonina do que os animais mais jovens e sadios. Num dos testes, os
ratos que receberam melatonina por oito semanas ganharam o equivalente a 1,3%
de seu peso, enquanto os que receberam apenas água e alimentação usual
engordaram 4,7%. Quando o tratamento foi mais longo, as diferenças se
acentuaram. O grupo tratado por 12 semanas com uma mistura de água e melatonina
perdeu 2% do peso corporal, enquanto o que tomou apenas água pesava em média
quase 8% a mais no final do período, segundo estudo publicado em 2013 no
Journalof Pineal Research.
Esse trabalho, que Cipolla vem desenvolvendo em parceria com
colegas da USP, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Instituto
Butantan e dos Estados Unidos, indica que uma redução importante nos níveis de
melatonina, como a observada nos ratos, aumenta a fome e favorece o ganho de
peso por duas vias diretas e uma indireta. Níveis mais altos de melatonina,
como os liberados à noite, atuam diretamente sobre uma região cerebral chamada
hipotálamo inibindo a fome. Portanto, menos melatonina significa um apetite
maior. Outro efeito direto da diminuição desse hormônio é uma redução da queima
de energia pelo tecido adiposo marrom.
De modo indireto, a redução da melatonina desregula a
produção e a ação do hormônio insulina e reduz a produção de leptina pelo
tecido adiposo – dois hormônios que também atuam sobre o hipotálamo inibindo a
fome. Sem melatonina, ou com níveis muito baixos dela, perdem-se dois dos
freios cerebrais do apetite e se gasta menos energia. Estudos experimentais
indicam ainda que, na ausência da melatonina, o corpo produz mais grelina,
hormônio que induz a fome.
Equilibrados sob condições normais, o acúmulo (A) e o gasto (B) de energia mudam com a falta de melatonina. |
Existe a suspeita de que essa alteração na produção e na
ação da insulina inicie um processo de retroalimentação, gerando um círculo
vicioso. Animais que produzem menos insulina também secretam menos melatonina,
mostrou um experimento usando ratos com diabetes tipo 1, doença que causa uma
diminuição importante na produção de insulina. A redução nos níveis de
insulina, porém, explicou apenas 20% da queda na produção de melatonina. O que
mais influenciou a diminuição nos níveis do hormônio do sono, constataram
Cipolla e seus colegas, foram as altas concentrações sanguíneas de glicose
(hiperglicemia), comum quando o diabetes não está controlado. Testes feitos com
seres humanos já demonstraram que, quanto menor a produção de melatonina à
noite, maior a glicemia em jejum.
Esse resultado também levanta a hipótese de que algo
semelhante possa ocorrer no diabetes tipo 2, uma forma bem mais frequente da
doença – calcula-se que cerca de 10% dos adultos desenvolvam diabetes tipo 2,
uma das consequências da obesidade, já considerada uma epidemia no mundo
ocidental. Testes feitos com ratos que tinham diabetes tipo 1 e com ratos com
diabetes tipo 2 indicaram que a suplementação de melatonina ajudou a
sincronizar o metabolismo nas fases de atividade e de repouso, melhorou a ação
da insulina e ajudou a regular a ingestão e o metabolismo de lipídios.
Uma das contribuições fundamentais do grupo foi elucidar
como a melatonina ajuda o organismo a manter a sincronia temporal com o
ambiente.
Já se sabia que a retina, tecido fotossensível que recobre o
fundo do olho, envia sinais para o relógio biológico existente no hipotálamo.
Este, por sua vez, estimula a pineal a produzir melatonina de noite e inibe a
síntese durante o dia.
Mas como a melatonina sincroniza o metabolismo ao longo
das 24 horas do dia, se ela só é secretada à noite?
Cipolla e seus colegas verificaram que, uma vez lançada no
sangue, a melatonina ativa nas células de diferentes partes do corpo um
conjunto de genes –os chamados clock genes ou genes do relógio – que agem como
sincronizadores periféricos. Eles transmitem a informação do relógio central
para todas as células do organismo. Nas células, esses genes disparam uma
cadeia de eventos moleculares que duram cerca de 24 horas e sinalizam o momento
em que as diferentes reações metabólicas devem acontecer. Esse mecanismo pode
ajudar a entender o padrão de funcionamento dos diferentes órgãos e tecidos do
corpo.
Acertando os ponteiros “A melatonina já é usada para tratar
distúrbios do sono e talvez possa ser adotada para ajudar a restabelecer o
padrão circadiano de liberação de outros hormônios”, diz o endocrinologista
Marcio Mancini, da Faculdade de Medicina da USP. É que ela regula o ciclo de
produção de hormônios como o cortisol, liberado em situações de estresse; a leptina e a grelina, que regulam a fome; e o hormônio do crescimento, que
auxilia na reparação de danos celulares. “Mas ainda é necessário demonstrar que
o que se observou em ratos também ocorre em seres humanos”, enfatiza
Mancini.
Nos últimos anos começaram a surgir evidências de que a
melatonina pode auxiliar no controle da glicemia e dos níveis de lipídios e
colesterol em seres humanos. Um estudo clínico feito nos Estados Unidos e
publicado em 2011 na revista Diabetes, Metabolic Syndrome and Obesity: Targets
and The - rapy indicou que, em pacientes com diabetes tipo 2 e insônia, a
melatonina melhorou o sono após três semanas e auxiliou o controle glicêmico
após cinco meses. Outro teste clínico, descrito no Journal of Pineal
Research , também em 2011, demonstrou que, após dois meses de tratamento com
melatonina, pessoas com distúrbios metabólicos apresentaram redução na
pressão sanguínea e nos níveis de colesterol.
Mesmo diante desses resultados, Cipolla é cauteloso e
ressalta que não existe solução fácil para os problemas metabólicos. “A
melatonina pode se tornar um coadjuvante no tratamento desses distúrbios e talvez
tenha um papel especialmente importante na prevenção deles”, diz. “Após tantos
anos de estudos experimentais, chegou a hora de realizar estudos clínicos bem
planejados e adequadamente controlados para testar o papel da melatonina na
fisiopatologia metabólica humana.”
Ainda há muito trabalho a ser feito. É preciso, primeiro,
verificar a eficácia e a segurança da melatonina para tratar esses problemas em
seres humanos.
Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2015/04/044-048_Melatonina_230.pdf?134b45
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